Participação das pessoas é o que levará o conhecimento biotecnológico aos avanços necessários com mais rapidez
A biotecnologia aplicada à saúde tem avançado rapidamente no Brasil, com novos medicamentos, cultivo de células tronco pluripotentes derivadas de tecidos adultos, pesquisas em organoides, vetores, nanotecnologia, peptídeos e proteínas. Além disso, houve avanços significativos em tecnologia diagnóstica e assistiva, transferência de tecnologia e aprofundamento do conhecimento científico em saúde, seja sobre doenças raras, câncer ou esquizofrenia.
Nós, pacientes e familiares, organizados em associações locais ou nacionais, pequenas ou grandes, aprendemos a conviver e a torcer pelo avanço dia após dia. Torcemos e nos manifestamos porque acreditamos no papel estratégico que os pacientes têm no seu tratamento, diagnóstico e cura.
A pandemia da Covid-19 trouxe grandes ensinamentos para a humanidade. Dois se encaixam bem na nossa temática e visão de mundo: a importância do trabalho colaborativo para o avanço da ciência mundial e o potencial curativo que o conhecimento biotecnológico possui se demandado com urgência.
O trabalho colaborativo é a essência da sociedade civil organizada (incluindo as associações) e, nessa reflexão, é valioso trazer à tona exemplos de como as associações no Brasil têm contribuído para que a biotecnologia em saúde seja cada vez mais um assunto transversal e acessível. Esse intercâmbio entre o universo comunitário e biotecnológico tem se apresentado com nuances diversificadas e surpreendentes. Muitas vezes as associações são fonte de informação, outras de contraponto e algumas vezes até origem de recursos financeiros para inovações.
Um exemplo histórico é o desenvolvimento da vacina contra a Varíola pelo Instituto Oswaldo Cruz que respondeu às demandas vivas da sociedade e se relacionou ativamente com a comunidade - ainda não tão consciente do seu papel. Desse relacionamento surgiram muitas patentes que financiaram o trabalho da própria Fiocruz em prol do bem comum ao longo de anos.
Com mais de 35 anos de existência, a Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace) é outro exemplo de associação bem estabelecida que vem construindo pontes entre os pacientes e os setores médico, industrial e de inovação biotecnológica. A doação recente de um equipamento de ressonância magnética com potência de 1.5 tesla, adquirido após 12 anos de arrecadação de fundos para o Hospital da Criança em Brasília José Alencar (unidade de saúde vinculada ao SUS) é um exemplo prático de investimento financeiro vindo da união das famílias em torno de uma causa comum. Esse exemplo prático traz ainda um detalhe bem inspirador: durante o exame, a criança pode escolher sua música preferida para ouvir.
No universo das doenças raras, o Instituto DEAF1 tem trabalhado incessantemente pelo avanço do conhecimento biotecnológico e da medicina genética de precisão. A autora deste texto, que preside o Instituto, tem estabelecido parcerias com grandes universidades, como a Unicamp e a USP, e intercâmbio com outras associações em busca de um lugar ao sol nas descobertas que estão emergindo no universo científico mundial.
Entre as iniciativas do Instituto, que tem pouco mais de dois anos de existência, está o investimento de R$ 500 mil em uma pesquisa inovadora com organoides na Califórnia com o professor doutor Alysson Muotri, renomado pesquisador do ramo de autismos de fundo genético e raro. Financiado 100% por recursos brasileiros, o gesto representa uma ação em prol do avanço em saúde para a condição ultrarrara da mutação no gene DEAF1 e para todos os demais pacientes com quadros de transtornos do neurodesenvolvimento com fundo genético.
Contudo, ainda há um vasto campo a ser desbravado. A queda recente no número de pedidos de registro de patentes no Brasil mostra o resultado de uma preocupante redução no incentivo financeiro e logístico. São notórias as fugas do capital intelectual brasileiro para que possam ser financiados em outros países e para que seus conhecimentos possam chegar às aplicações práticas em saúde que tanto necessitamos. Frente a essa triste faceta da realidade nacional, muitas descobertas acabam se perdendo, sendo engavetadas e, para a tragicidade dos pacientes das associações, o conhecimento, que poderia significar vidas salvas ou reabilitadas, não chega a se concretizar.
Para nós, associações de pacientes, a imagem que poderia ilustrar nossa sensação é de uma miragem no deserto. Nós, nossos filhos, familiares e amigos vivemos num deserto de opções de tratamento e buscamos por soluções na ciência. E encontramos muitas conclusões que se aplicariam às nossas demandas urgentes de saúde. Mas... elas ficam como se fossem uma miragem intocável. Quando nos aproximamos, percebemos que ela está lá, em potencial, mas não pode ser alcançada pelas nossas mãos... Por quê? É a pergunta inevitável e comum no nosso meio.
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A resposta pode ter vários nuances técnicos, industriais ou políticos, mas o cerne é: a nossa urgência ainda não chegou na urgência do coletivo. E entenda-se por coletivo a esfera pública e privada. Um bom indicador de que há caminhos para uma união ainda mais profícua e estruturada entre a organização civil organizada e o setor público e privado são os editais de financiamento de pesquisas envolvendo associações de pacientes. A Chain Zuckeberg Institute (CZI) e outros stakeholders internacionais já lançaram iniciativas com esse olhar diferenciado e tiveram grande aderência de público. Prêmios aos projetos em torno da biotecnologia envolvendo as associações também é outro caminho de apoio que vislumbra um avanço no "S" da agenda ASG (Ambiental, Social e Governança), tão necessariamente alardeada atualmente entre as organizações após o Pacto Global em parceria com o Banco Mundial.
Na esfera pública brasileira, a participação das associações ainda não foi formalmente reconhecida como um diferencial para financiamentos coletivos ou individuais. Embora o caminho a percorrer esteja apenas começando, o futuro é o nosso ponto focal motivador. Isso nos leva a questionar: qual seria o tamanho do nosso interesse se a urgência fosse nossa, como foi no caso da Covid-19? Nossa resposta como pacientes é que a urgência da ciência é essencialmente coletiva. Os ombros dos gigantes são fundamentais para superar o próximo desafio "unanimemente urgente" da humanidade. A participação das pessoas - atores indispensáveis neste processo - é o que levará o conhecimento biotecnológico aos avanços necessários com mais rapidez, resiliência, responsabilidade e inovação. Sabemos que, no fundo, se trata de vidas - de NOSSAS (com caixa alta) vidas.
“A urgência da ciência sempre será coletiva, porque os ombros dos gigantes são essenciais para que o próximo desafio “unanimemente urgente” da humanidade seja superado”
Os autores deste artigo agradecem a Arisson Tavares da Silva, jornalista da Abrace.
Autores
Karine Bittencourt - CEO do Instituto DEAF1 - Mãe de um rapaz de 15 anos com a Síndrome de Vulto-Van, autismo suporte nível 3 e epilepsia de difícil controle.
Julino Rodrigues
Pesquisador na área de Inovação Farmacêutica, Saúde Pública e Participação Social. Coordenador do Observatório de Direitos dos Pacientes da UnB. Consultor de Inteligência de Mercado e Inteligência Política na Vox e Gov
Fonte: Biotecnologia no Brasil: o papel estratégico das organizações de pacientes. JOTA Jornalismo, coluna - O Estado da Saúde. 2022.
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