Setor produtivo deve estar preparado para ambiente regulatório mais rigoroso
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O avanço da Cannabis medicinal no Brasil é resultado de um processo coletivo de convencimento, embasado em evidências científicas e participação social. Este progresso reflete a importância dos canabinoides no tratamento de condições como as síndromes de Dravet, Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa.
A mobilização foi impulsionada principalmente pela atuação de associações de pacientes, lideradas em grande parte por mães que se tornaram defensoras da causa por necessidade. A coragem das associações profissionais, da Anvisa e de legisladores, tanto em nível federal quanto estadual, foi essencial para dar voz a essas demandas, permitindo o acesso a estes medicamentos.
Nesse cenário, em janeiro de 2023, a Lei 17.618, de autoria do deputado estadual Caio França (PSB-SP), foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas, estabelecendo o fornecimento de derivados de Cannabis sativa pelo SUS no estado de São Paulo. Em maio de 2024, ocorreu a primeira distribuição gratuita de CBD, marcando um momento histórico para o acesso universal a essa terapia transformadora e reforçando a importância da participação social na saúde
Panorama legislativo
A implementação da Lei 17.618/2023 demonstra a capacidade do Legislativo e do governo paulista de trabalharem em prol dos pacientes, superando desafios partidários e regulatórios para garantir acesso seguro e eficaz a tratamentos diferenciados.
No entanto, a inclusão da Cannabis no SUS paulista ainda não universalizou o acesso, e o tema permanece em aberto tanto no panorama legislativo quanto nas discussões entre associações de classe e de pacientes.
De acordo com relatório da Vox e Gov, em parceria com a Sigalei, a Câmara dos Deputados tem sido a principal casa iniciadora das proposições legislativas sobre Cannabis medicinal, com destaque para os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que possuem a maior representação entre os autores dessas proposições.
Observa-se que o foco principal dessas proposições é ampliar o acesso ao tratamento, porém há falhas na execução, além da falta de diretrizes claras para a compra pública e a disponibilização dos medicamentos aos pacientes. A maioria das proposições foi apensada ao PL 399/2015, que ainda aguarda deliberação na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.
A deputada Andréa Werner (PSB-SP), autista e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, destaca a importância da democratização do acesso a medicamentos à base de canabidiol (CBD), salientando que este objetivo depende de ações coordenadas em diferentes frentes. Segundo Werner:
"A democratização do acesso a medicamentos com canabidiol hoje depende de ação em três frentes: medidas para reduzir o custo de produção dos medicamentos, educação continuada de médicos prescritores e ampliação da lista de condições que podem receber o medicamento. Temos evidências científicas robustas dos efeitos positivos para pessoas com esclerose múltipla, alguns tipos de epilepsia e dores crônicas, por exemplo. Contudo, não podemos tratar um novo medicamento como uma panaceia, e sim focar em como o uso adequado traz ganho de qualidade de vida para pacientes e melhor uso de recursos públicos, já que há casos em que o canabidiol pode substituir vários medicamentos de alto custo. Para esse último ponto, o desenvolvimento de novas pesquisas e uma política robusta de formação para médicos é um passo necessário".
O deputado Valdomiro Lopes (PSB-SP), autor do PL 954/2023, enfatiza a necessidade de propostas legislativas que apresentem impacto social e econômico significativo. Ele defende a redução dos custos da Cannabis medicinal por meio da produção pública.
"Inconformado com o alto custo da Cannabis medicinal imposto pelo mercado e considerando a aprovação da Lei 17.618/2023, fiz algumas diligências pessoais e descobri que a FURP (Fundação para o Remédio Popular), possui todos os equipamentos e as condições técnicas necessárias, inclusive com autorização da Anvisa, para produzir esse medicamento. Isso foi confirmado pelo farmacêutico-chefe da instituição. No entanto, é necessário que o governo do estado compre o IFA (Insumo Farmacêutico Ativo) para sua produção, por um preço que representa apenas 20% do valor registrado na ata de preço”, conclui o deputado.
Dados fornecidos pela Close-Up International indicam que o estado de São Paulo lidera as vendas de produtos derivados de canabinoides, representando 29,6% do total nacional, seguido por Rio de Janeiro e Minas Gerais, que juntos concentram 50,6% das vendas no Brasil. Dessa forma, a eventual aprovação do PL 954 pode transformar São Paulo em uma potência produtiva nacional e estabelecer um marco institucional para a universalização do acesso.
Cadeias produtivas
No cenário global, a produção de Cannabis sativa tem crescido, com a China como líder, e a França se destacando no cultivo de cânhamo. Portugal, por exemplo, aumentou suas exportações, refletindo políticas mais flexíveis. No entanto, o Brasil ainda enfrenta desafios: em Portugal, com 5% da população brasileira, existem 21 empresas licenciadas para cultivo, 13 para produção de medicamentos e 27 para exportação e importação de cannabis medicinal, números muito superiores aos do Brasil.
A advogada e ex-integrante da Anvisa Maria José D. Fagundes afirma que o cenário nacional para cultivadores da Cannabis medicinal e investidores pode mudar em breve com a iniciativa do Ministério da Justiça/Conad.
Segundo informado pelo JOTA, o Grupo de Trabalho (GT) que discutiu o plantio de Cannabis sativa entregou uma minuta de decreto para regulamentar seu cultivo no Brasil para fins medicinais e de pesquisa. A expectativa é que a aprovação do decreto pelo Executivo defina onde, como e quem poderá cultivar, com regras específicas para organizações de pacientes.
Em recente audiência no STJ, especialistas reforçaram que o cultivo de cannabis no Brasil poderia evitar a fuga de capitais e ampliar o acesso, principalmente para pacientes de baixa renda. Entretanto, também foram levantadas preocupações sobre o controle estatal do cultivo e os riscos do uso indiscriminado, especialmente para crianças.
Expansão do mercado
De acordo com o relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) da Anvisa, a renovação da autorização sanitária para produtos de cannabis será por mais cinco anos, com expansão das vias de administração para incluir as vias oral, sublingual, inalatória e dermatológica.
O relatório reforça a importância da regulamentação atual, mas aponta a falta de estudos clínicos robustos, o que impede a migração desses produtos para a categoria de medicamentos. Ainda, para Carvalho e Rodrigues (2023), as empresas produtoras devem garantir a qualidade dos produtos através de pesquisas e desenvolvimento, e o monitoramento dos pacientes, uma vez que a composição varia conforme o quimiotipo da espécie utilizada.
Nesse contexto, o fracionamento das doses para individualizar o tratamento, objeto de muitas ações judiciais, atualmente é vedado pela RDC 327/19, apesar de estudos mostrarem que a dosagem de CBD pode variar significativamente entre os indivíduos, evidenciando a necessidade de personalização no tratamento.
“Esta restrição é crítica para o tratamento com canabinoides, devido à variação substancial na resposta dos pacientes e à necessidade de ajustes precisos de dosagem para realizar uma otimização dos potenciais benefícios terapêuticos. Essa afirmação é amplamente amparada por estudos que concluem a necessidade de real personalização do tratamento, a exemplo do estudo pivotal open label com uso de CBD para epilepsia refratária do tipo Dravet, no qual se demonstra que há um range de dose que inicia em 2 mg/kg até indivíduos que ultrapassam 50 mg por dia, por indivíduo. Para isso, as farmácias magistrais possuem ampla expertise no manejo de princípios ativos, incluindo substâncias controladas”, afirma Marco Fiaschetti, diretor-executivo da Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag).
Apesar das dificuldades técnicas, políticas e regulatórias, o número de empresas com autorização sanitária e de médicos prescritores tem aumentado no Brasil. De acordo com relatório da Vox e Gov em parceria com a IQVIA, o mercado de Cannabis medicinal expandiu seu portfólio devido aos posicionamentos positivos do setor estatal, incluindo os avanços na regulamentação sanitária, permitindo a presença prescritiva e de vendas através da RDC 327.
Nos últimos quatro anos, houve um aumento significativo no número de pontos de venda farmacêuticos (PDVs), número de médicos prescritores ativos e no volume de prescrições. Com destaque para as prescrições em neurologia (66 mil prescrições), representando 27% do total, seguidas por psiquiatria (57 mil), representando 23%, e clínica médica (33 mil), aproximadamente 13% do total. No entanto, a clínica médica possui o maior número de médicos que prescrevem Cannabis medicinal.
Nos 12 meses de maio de 2023 a abril de 2024, foram identificadas pela IQVIA 248.279 prescrições, movimentando-se em 10 mil PDVs ativos. Esse aumento prescritivo representa um crescimento significativo em comparação com anos anteriores, com aumentos de 135% em prescrições, 400% em CRMs prescritores e 250% em PDVs ativos, evidenciando a evolução do mercado nos últimos quatro anos.
Nesse mesmo sentido, o relatório da Close-Up International indica um forte crescimento do mercado de derivados canabinoides no Brasil, especialmente no canal de farmácias. Entre julho de 2023 e julho de 2024, a taxa composta de crescimento anual (CAGR) foi de 116,7% em valores financeiros, com uma taxa de crescimento anual de aproximadamente 66% no período mais recente.
Entre os canais de distribuição, as farmácias registraram o crescimento mais expressivo: 123,1% em valor e um impressionante aumento de 227,1% no volume de unidades vendidas.
Neste contexto, a empresa Prati-Donaduzzi mantém-se líder de mercado, com 53,5% de participação e presença em 19.583 PDVs, superando seus concorrentes mais próximos: Hypera Pharma (14,5%), Greencare (13,5%), Biolab Corp (7,7%) e Ease Labs (5,4%).
Um destaque notável é a Herbarium Rede, que apresentou um crescimento de 11.244,5%, apesar da sua baixa representatividade (1,7%). Considerando a fonte pagadora, o período apresentou um crescimento de 62,3%, atingindo o valor de R$ 127,68 milhões em julho de 2024, com um crescimento de 118% para a fonte pública.
Ainda, identificou-se que o número de médicos ativos cresceu 69,7% no período, passando de 26.690 para 45.303 prescritores. Esse aumento reflete o esforço de educação e capacitação realizado nos últimos anos, mas também indica a necessidade de ampliar a educação médica para os 72% de novos prescritores (32.398) que ingressaram no mercado.
O número de prescrições por médico também aumentou, com uma média de 6 prescrições por CRM (per capita), em comparação com 4,8 no período anterior. Essa relação é ainda maior dentre médicos que já prescrevem os produtos há 1 ano, pelo menos, o que indica que esse grupo de médicos está ampliando, ainda mais o uso, de um período para outro.
Isso se explica na relação per capita desse grupo de médicos, que já são 28% dos prescritores atuais, quando olhamos o aumento da média, deste grupo, de 8 prescrições/CRM para 14,5 prescrições/CRM. As especialidades médicas que mais prescrevem produtos à base de Cannabis são a neurologia (27,5%) e a psiquiatria (26,6%), seguidas pela clínica geral (10,3%).
![Vox e Gov: O futuro da Cannabis Medicinal no Brasil (Fonte: Close-Up International )](https://static.wixstatic.com/media/a5c6d0_3745da7105fe484c879027e5be9b5e92~mv2.png/v1/fill/w_980,h_449,al_c,q_90,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/a5c6d0_3745da7105fe484c879027e5be9b5e92~mv2.png)
Desafios educacionais para ampliação do acesso
Para Talita Poli Biason, médica pediatra e diretora da Unidade de Cannabis da Direto Pharma, um dos grandes desafios para a ampliação da prescrição do CBD e produtos derivados de Cannabis reside no pouco conhecimento dos prescritores sobre essa categoria.
“O maior desafio na ampliação da prescrição do CBD e dos produtos derivados de Cannabis é, em geral, o pouco conhecimento dos prescritores sobre essa categoria. O sistema endocanabinoide-SEC (sistema do corpo no qual esses produtos produzem seus efeitos) foi descoberto entre as décadas de 1980 e 1990 e muitas faculdades ainda hoje não contemplam esse tema na sua grade curricular. Eu mesma, formada em 2000, não sabia que o SEC existia até pouco tempo e precisei buscar uma atualização para saber mais sobre o assunto”, conta Talita. “Na minha opinião, educação continuada para os profissionais de saúde, é a melhor estratégia para promover acesso seguro aos pacientes”, completa a médica.
Cidinha Carvalho, presidente da Cultive, enfatizou que, embora a inclusão da Cannabis no SUS seja um marco significativo, ainda há muitos desafios pela frente. Segundo ela, é essencial que os médicos do SUS sejam devidamente capacitados na prescrição e acompanhamento da terapia com canabinoides.
“As patologias elencadas são muito pouco diante da tamanha demanda que existe, ainda é uma regulamentação excludente. E lutar para que tenhamos uma regulamentação para colocar a Cannabis em farmácias vivas, que seja um fitoterápico, farmácias de manipulação, autocultivo sendo a melhor forma de acesso democrático e que as associações possam ser fornecedoras da cannabis pelo SUS. É necessário que se tenha uma regulamentação para associações fornecerem o óleo para o SUS, oferecendo um leque de opções de óleo com diferentes concentrações de canabinoides e estender esse atendimento dentro do que já é praticado há alguns anos pela omissão do estado”, conclui Carvalho.
Conclusões
A capacidade dos pioneiros em superar desafios regulatórios permitiu que o setor produtivo privado fosse beneficiado pela ausência temporária de grandes empresas farmacêuticas. Isso, combinado com um mercado aquecido e o otimismo quanto ao acesso, gera projeções de crescimento sustentado e a atração de investidores mais capitalizados.
Com base nos dados aqui apresentados, é possível afirmar que o futuro da Cannabis medicinal no Brasil depende da habilidade dos stakeholders em formar consensos mínimos e promover ações coletivas de médio e longo prazo. A consistência dessas ações será fundamental para moldar o ambiente de negócios em cenários de competição mais acirrada, especialmente com o aumento do volume de compras públicas. Além disso, é necessário ter cuidado com o otimismo exagerado e evitar agendas muito fragmentadas. Assim, as seguintes ações devem ser consideradas:
Transição: Após o período de carência de cinco anos indicado pela Anvisa, o setor deve estar preparado para um ambiente regulatório mais exigente e desenvolver estratégias para lidar com possíveis pressões exercidas por grandes empresas junto aos prescritores, pacientes e ao setor estatal.
Dados: É crucial desenvolver instrumentos públicos e privados para o financiamento de estudos científicos, com ênfase em pesquisa clínica e no monitoramento de eventos adversos na pós-comercialização, possibilitando que os produtos de cannabis migrem para a categoria de medicamentos ainda nessa fase de carência de cinco anos.
Relacionamento: É necessário promover ações de divulgação científica para os novos prescritores, juntamente com iniciativas coordenadas de advocacy, a fim de alinhar a produção legislativa e as compras públicas às diretrizes da Anvisa. Isso garantirá maior acesso aos produtos, considerando aspectos como custo, qualidade e disponibilidade.
Em suma, a oferta de Cannabis medicinal deve ser atenta às necessidades e segurança dos pacientes, com uma abordagem baseada em evidências científicas e em conformidade com as exigências técnicas de produção, de forma a atender àqueles que necessitam desse tratamento. Parafraseando o sociólogo Betinho: "Quem tem dor tem pressa!".
Autores:
Julino Rodrigues
Pesquisador na área de Inovação Farmacêutica, Saúde Pública e Participação Social. Coordenador do Observatório de Direitos dos Pacientes da UnB. Consultor de Inteligência de Mercado e Inteligência Política na Vox e Gov
Antônio Carlos Teixeira
Advogado e químico, tendo atuado por mais de 35 anos na produção farmoquímica nacional, como vice-presidente em colegiado de classe e diretor-executivo em unidade fabril
Fonte: O futuro da Cannabis medicinal no Brasil JOTA Jornalismo, coluna - O Estado da Saúde. 17/09/2024|11:25
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